10.4.09

O medo e a estupidez

Por ocasião da crise das caricaturas dinamarquesas, Vasco Graça Moura publicou no DN um artigo ― para o qual não encontro hiperligação, pelo que o colo infra na íntegra ―, do qual gostaria de destacar o seu início (e de onde retirei o título para este postal):
«Na Divina Comédia, Dante começa a descrever assim um encontro no círculo oitavo do Inferno: "E qual mais decepado ou desastroso / mostrasse o corpo, nada iguala a suja / bolsa em seu fosso nono e horroroso. / Nem pipa a que aduela e fundo fuja, / como um que vi, assim se desmedula, / oco do mento até onde se ruja: / entre as pernas a tripa pende e pula;/ a fressura se vê e o triste saco / que merda faz daquilo que se engula./ Enquanto tudo nele a olhar estaco, / olhou-me e com as mãos se abriu o peito / dizendo: 'Vê como eu me desempaco! / vê como Maomé está desfeito! / À minha frente vai chorando Ali, / fendido, do toutiço ao mento, o aspeito. / E os outros que tu vês todos aqui, / que hão semeado escândalos e cisma / lá na vida, fendidos vês assi.'" (Inferno, XXVIII, 19-36, trad. minha). 
Maomé e o genro, Ali, são colocados entre os semeadores de escândalo e de cisma, de acordo com a mentalidade cristã da época, e tratados com o maior desprezo numa linguagem violenta e de estilo intencionalmente desconjuntado como a própria pipa a desmanchar-se a que alude. Por implicados numa "cisão", há um diabo que os vai abrindo ao meio a talhe de espada, à medida que eles vão passando e voltando a passar. E de Maomé, o florentino chega a ver as tripas numa metáfora de sórdida abjecção fecal "il tristo sacco / che merda fa di quel che si trangugia". Esta é provavelmente a primeira grande representação grotesca de Maomé que a cultura europeia produziu. Integra-se no genial conjunto de horrores que povoam os quadros do Inferno dantesco e, como tal, faz parte de uma das obras máximas do património cultural europeu. Não há gesto ou atitude que possam suprimi-la em nome do politicamente correcto ou de uma complacência hipócrita e borrada de medo. Vai-se deixar de ler e admirar Dante por causa disso? Vai-se censurar o poema em futuras edições a pretexto de que, assim, ele ofende o Islão? Vai-se fazer um auto-de-fé das edições existentes? Vai-se pedir desculpa ao Islão por a cultura europeia ter produzido destas coisas? A avaliar por algumas cautelosas reacções, já não falta muito. A estupidez e o medo às vezes dão-se circunspectamente as mãos. (...)»
Lembrei-me deste texto a propósito de uma notícia da World Politics Review, que dá conta de uma peculiar acção de protesto por parte de muçulmanos em Itália, que faz recordar uma acção levada a cabo pelo poder taliban no Afeganistão há uns anos:
ISLAMIC PROTEST -- Visitors to the magnificent church of St. Petronio in Bologna are now searched by Italian police before entering because in addition to protests by Muslims offended by a depiction of Mohammed in a 14th-century fresco, there have been unsuccessful attempts to blow the painting up. The painting of the Last Judgement, by the Renaissance artist Giovanni di Modena, shows a devil dragging the prostrate, naked body of Mohammed into hell as a heretic. Against a background of failed crusades in the Holy Land, the Catholic Church in the 14th century had no taste for religious coexistence. Now it's militant Islam that is on the offensive: sources in Bologna say security forces have stopped at least two attempts to sabotage the painting by Islamic extremists. 
  Esta iniciativa iconoclasta fundamenta-se, não apenas na proibição de representar o Profeta e na forte carga blasfémica que a imagem terá aos olhos dos muçulmanos, mas compreende-se melhor a partir da putativa superioridade do Islão sobre todas as culturas anteriores ou posteriores ao seu surgimento, parte integrante da cultura islâmica, observável em todos os territórios onde o Islão se impôs, sempre pela força: norte de África, Pérsia, Índia, Afeganistão. Para o Islão, tudo o que antecedeu é, por definição, inferior e deve ser superado pela imposição da cultura islâmica. Perante a ofensiva islâmica, face ao avanço da barbárie todos somos chamados a resistir através da defesa dos nossos valores e da nossa cultura, sem pedir desculpa. E é em defesa da liberdade de expressão face à fúria homicida islâmica que um grupo de jornalistas, The International Free Press Society (IFPS), tomou a iniciativa, que visa, além do mais, angariar fundos, de leiloar cópias numeradas e assinadas de uma das caricaturas que mais polémica causou:
Via Jihad Watch e Gates of Vienna.

Addendum: ao que parece, o site do The International Free Press Society foi atacado por hackers. Outras plataformas da IFPS: http://internationalfreepresssociety.wordpress.com/ e http://freepresssociety.blogspot.com/

O texto de VGM, na íntegra: Dante, Maomé e o medo Vasco Graça Moura vgm@mail.telepac.pt Escritor, deputado europeu Na Divina Comédia, Dante começa a descrever assim um encontro no círculo oitavo do Inferno "E qual mais decepado ou desastroso / / mostrasse o corpo, nada iguala a suja / bolsa em seu fosso nono e horroroso. / Nem pipa a que aduela e fundo fuja, / como um que vi, assim se desmedula, / oco do mento até onde se ruja: / entre as pernas a tripa pende e pula;/ a fressura se vê e o triste saco / que merda faz daquilo que se engula./ Enquanto tudo nele a olhar estaco, / olhou-me e com as mãos se abriu o peito / dizendo: 'Vê como eu me desempaco! / vê como Maomé está desfeito! / À minha frente vai chorando Ali, / fendido, do toutiço ao mento, o aspeito. / E os outros que tu vês todos aqui, / que hão semeado escândalos e cisma / lá na vida, fendidos vês assi.'" (Inferno, XXVIII, 19-36, trad. minha). Maomé e o genro, Ali, são colocados entre os semeadores de escândalo e de cisma, de acordo com a mentalidade cristã da época, e tratados com o maior desprezo numa linguagem violenta e de estilo intencionalmente desconjuntado como a própria pipa a desmanchar-se a que alude. Por implicados numa "cisão", há um diabo que os vai abrindo ao meio a talhe de espada, à medida que eles vão passando e voltando a passar. E de Maomé, o florentino chega a ver as tripas numa metáfora de sórdida abjecção fecal "il tristo sacco / che merda fa di quel che si trangugia". Esta é provavelmente a primeira grande representação grotesca de Maomé que a cultura europeia produziu. Integra-se no genial conjunto de horrores que povoam os quadros do Inferno dantesco e, como tal, faz parte de uma das obras máximas do património cultural europeu. Não há gesto ou atitude que possam suprimi-la em nome do politicamente correcto ou de uma complacência hipócrita e borrada de medo. Vai-se deixar de ler e admirar Dante por causa disso? Vai-se censurar o poema em futuras edições a pretexto de que, assim, ele ofende o Islão? Vai-se fazer um auto-de-fé das edições existentes? Vai-se pedir desculpa ao Islão por a cultura europeia ter produzido destas coisas? A avaliar por algumas cautelosas reacções, já não falta muito. A estupidez e o medo às vezes dão-se circunspectamente as mãos. O escândalo religioso é uma questão com a qual a Europa e o Ocidente têm convivido desde sempre, através de ortodoxias e heresias, cismas, guerras de religião, seitas, anátemas, laicidades e irreverências. Na Igreja Católica não teria havido o Index expurgatorum librorum se não fosse assim. Mas passou há muito o tempo da famigerada confusão entre o poder eclesiástico e o poder temporal que tornou possíveis as fogueiras e a eliminação física dos dissidentes. Deus, Cristo, o Espíri- to Santo, Maria, os anjos, os santos, o Diabo, todas as figuras que povoam o universo da crença cristã, têm sido um constante objecto de representações tanto veneradoras como irónicas, em todas as áreas da expressão humana (e até ao nível de anedotas chocarreiras), e não veio nenhum mal ao mundo por causa disso. O Islão só pode pretender proibir a representação de Maomé a quem o segue. E mesmo assim, face aos direitos humanos, não pode aplicar outras sanções aos infractores que não sejam as do foro espiritual. Uma reprovação religiosa é assunto ligado ao grémio dos crentes e a sanção pode ocorrer apenas nesse foro espiritual, não havendo que discutir-lhe a legitimidade nesse plano. Mas não pode extravasar dele para qualquer outro e muito menos pode acarretar quaisquer consequências penais ou civis. Se a liberdade de pensamento e de expressão envolve a questão da responsabilidade pelas consequências do respectivo exercício, a área da crença ou da descrença é uma daquelas em que isso não se aplica. Ninguém pode ser discriminado ou perseguido por causa delas. E por isso é perfeitamente ridícula a reacção de alguma gente deveras acagaçada com as ameaças fundamentalistas só porque um caricaturista se lembrou de representar o profeta e um jornal publicou essas caricaturas. O Ocidente não pode deixar que se insinue nas suas sociedades esta nova modalidade de terrorismo religioso sob a forma de uma canalha em fúria, acicatada em nome de Alá e do seu profeta, ou sob a forma de chantagem económica. A mesma Europa que tanto diz defender os direitos humanos e aprovou ainda há pouco uma Carta deles, não pode agora perder a face só porque tem medo. Não pode ter medo. Lutar contra a intimidação também é respeitar um direito fundamental.

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