23.3.10

Carta Pastoral do Santo Padre Bento XVI aos Católicos na Irlanda (excertos)

1. Amados Irmãos e Irmãs da Igreja na Irlanda, é com grande preocupação que vos escrevo como Pastor da Igreja universal. Como vós, fiquei profundamente perturbado com as notícias dadas sobre o abuso de crianças e jovens vulneráveis da parte de membros da Igreja na Irlanda, sobretudo de sacerdotes e religiosos. Não posso deixar de partilhar o pavor e a sensação de traição que muitos de vós experimentastes ao tomar conhecimento destes actos pecaminosos e criminais e do modo como as autoridades da Igreja na Irlanda os enfrentaram. (...) 2. Por meu lado, considerando a gravidade destas culpas e a resposta muitas vezes inadequada que lhes foi reservada da parte das autoridades eclesiásticas no vosso país,, decidi escrever esta Carta Pastoral para vos expressar a minha proximidade, e para vos propor um caminho de cura, de renovação e de reparação. (...) Ao mesmo tempo, devo expressar também a minha convicção de que, para se recuperar desta dolorosa ferida, a Igreja na Irlanda deve em primeiro lugar reconhecer diante do Senhor e diante dos outros, os graves pecados cometidos contra jovens indefesos. Esta consciência, acompanhada de sincera dor pelo dano causado às vítimas e às suas famílias, deve levar a um esforço concentrado para garantir a protecção dos jovens em relação a semelhantes crimes no futuro. 4. Contudo, nos últimos decénios a Igreja no vosso país teve que se confrontar com novos e graves desafios à fé que surgiram da rápida transformação e secularização da sociedade irlandesa. Verificou-se uma mudança social muito rápida, que muitas vezes atingiu com efeitos hostis a tradicional adesão do povo ao ensinamento e aos valores católicos. Com frequência as práticas sacramentais e devocionais que sustentam a fé e a tornam capaz de crescer, como por exemplo a confissão frequente, a oração quotidiana e os ritos anuais, não foram atendidas. Determinante foi também neste período a tendência, até da parte de sacerdotes e religiosos, para adoptar modos de pensamento e de juízo das realidades seculares sem referência suficiente ao Evangelho. O programa de renovação proposto pelo Concílio Vaticano II por vezes foi mal compreendido e na realidade, à luz das profundas mudanças sociais que se estavam a verificar, não era fácil avaliar o modo melhor de o realizar. Em particular, houve uma tendência, ditada por recta intenção mas errada, a evitar abordagens penais em relação a situações canónicas irregulares. É neste contexto geral que devemos procurar compreender o desconcertante problema do abuso sexual dos jovens, que contribuiu em grande medida para o enfraquecimento da fé e para a perda do respeito pela Igreja e pelos seus ensinamentos. Só examinando com atenção os numerosos elementos que deram origem à crise actual é possível empreender uma diagnose clara das suas causas e encontrar remédios eficazes. Certamente, entre os factores que para ela contribuíram podemos enumerar: procedimentos inadequados para determinar a idoneidade dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa; insuficiente formação humana, moral, intelectual e espiritual nos seminários e nos noviciados; uma tendência na sociedade a favorecer o clero e outras figuras com autoridade e uma preocupação inoportuna pelo bom nome da Igreja e para evitar os escândalos, que levaram como resultado à malograda aplicação das penas canónicas em vigor e à falta da tutela da dignidade de cada pessoa. É preciso agir com urgência para enfrentar estes factores, que tiveram consequências tão trágicas para as vidas das vítimas e das suas famílias e obscureceram a luz do Evangelho a tal ponto, ao qual nem sequer séculos de perseguição não tinham chegado. 6. Às vítimas de abuso e às suas famílias Sofrestes tremendamente e por isto sinto profundo desgosto. Sei que nada pode cancelar o mal que suportastes. Foi traída a vossa confiança e violada a vossa dignidade. Muitos de vós experimentastes que, quando éreis suficientemente corajosos para falar de quanto tinha acontecido, ninguém vos ouvia. Quantos de vós sofrestes abusos nos colégios deveis ter compreendido que não havia modo de evitar os vossos sofrimentos. É compreensível que vos seja difícil perdoar ou reconciliar-vos com a Igreja. Em seu nome expresso abertamente a vergonha e o remorso que todos sentimos. Ao mesmo tempo peço-vos que não percais a esperança. É na comunhão da Igreja que encontramos a pessoa de Jesus Cristo, ele mesmo vítima de injustiça e de pecado. Como vós, ele ainda tem as feridas do seu injusto padecer. Ele compreende a profundeza dos vossos padecimentos e o persistir do seu efeito nas vossas vidas e nos relacionamentos com os outros, incluídas as vossas relações com a Igreja. Sei que alguns de vós têm dificuldade até de entrar numa igreja depois do que aconteceu. Contudo, as mesmas feridas de Cristo, transformadas pelos seus sofrimentos redentores, são os instrumentos graças aos quais o poder do mal é [derrotado] e nós renascemos para a vida e para a esperança. Creio firmemente no poder reestabelecedor do seu amor sacrifical – também nas situações mais obscuras e sem esperança – que traz a libertação e a promessa de um novo início. Dirigindo-me a vós como pastor, preocupado pelo bem de todos os filhos de Deus, peço-vos com humildade que reflictais sobre quanto vos disse. Rezo a fim de que, aproximando-vos de Cristo e participando na vida da sua Igreja – uma Igreja purificada pela penitência e renovada na caridade pastoral – possais redescobrir o amor infinito de Cristo por todos vós. Tenho confiança em que deste modo sereis capazes de encontrar reconciliação, profunda cura interior e paz. 7. Aos sacerdotes e aos religiosos que abusaram dos jovens Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos. Perdestes a estima do povo da Irlanda e lançastes vergonha e desonra sobre os vossos irmãos. Quantos de vós sois sacerdotes violastes a santidade do sacramento da Ordem Sagrada, no qual Cristo se torna presente em nós e nas nossas acções. Juntamente com o enorme dano causado às vítimas, foi perpetrado um grande dano à Igreja e à percepção pública do sacerdócio e da vida religiosa. Exorto-vos a examinar a vossa consciência, a assumir a vossa responsabilidade dos pecados que cometestes e a expressar com humildade o vosso pesar. O arrependimento sincero abre a porta ao perdão de Deus e à graça da verdadeira correcção. Oferecendo orações e penitências por quantos ofendestes, deveis procurar reparar pessoalmente as vossas acções. O sacrifício redentor de Cristo tem o poder de perdoar até o pecado mais grave e de obter o bem até do mais terrível dos males. Ao mesmo tempo, a justiça de Deus exige que prestemos contas das nossas acções sem nada esconder. Reconhecei abertamente a vossa culpa, submetei-vos às exigências da justiça, mas não desespereis da misericórdia de Deus. 8. Aos pais Ficastes profundamente transtornados ao tomar conhecimento das coisas terríveis que tiveram lugar naquele que deveria ter sido o ambiente mais seguro para todos. No mundo de hoje não é fácil construir um lar doméstico e educar os filhos. Eles merecem crescer num ambiente seguro, amados e queridos, com um forte sentido da sua identidade e do seu valor. Têm direito a ser educados nos valores morais autênticos, radicados na dignidade da pessoa humana, a serem inspirados pela verdade da nossa fé católica e a aprender modos de comportamento e de acção que os levem a uma sadia estima de si e à felicidade duradoura. Esta tarefa nobre e exigente está confiada em primeiro lugar a vós, seus pais. Exorto-vos a fazer a vossa parte para garantir a melhor cura possível dos jovens, quer em casa quer na sociedade em geral, enquanto que a Igreja, por seu lado, continua a pôr em prática as medidas adoptadas nos últimos anos para tutelar os jovens nos ambientes paroquiais e educativos. Enquanto dais continuidade às vossas importantes responsabilidades, certifico-vos de que estou próximo de vós e que vos dou o apoio da minha oração. (...) 10. Aos sacerdotes e aos religiosos da Irlanda Todos nós estamos a sofrer como consequência dos pecados dos nossos irmãos que traíram uma ordem sagrada ou não enfrentaram de modo justo e responsável as acusações de abuso. Perante o ultraje e a indignação que isto causou, não só entre os leigos mas também entre vós e as vossas comunidades religiosas, muitos de vós sentis-vos pessoalmente desanimados e também abandonados. Além disso, estou consciente de que aos olhos de alguns sois culpados por associação, e considerados como que de certo modo responsáveis pelos delitos de outros. Neste tempo de sofrimento, desejo reconhecer-vos a dedicação da vossa vida de sacerdotes e de religiosos e dos vossos apostolados, e convido-vos a reafirmar a vossa fé em Cristo, o vosso amor à sua Igreja e a vossa confiança na promessa de redenção, de perdão e de renovação interior do Evangelho. Deste modo, demonstrareis a todos que onde abunda o pecado, superabunda a graça (cf. Rm 5, 20). Sei que muitos de vós estais desiludidos, transtornados e encolerizados pelo modo como estas questões foram tratadas por alguns dos vossos superiores. Não obstante, é essencial que colaboreis de perto com quantos têm a autoridade e que vos comprometais para fazer com que as medidas adoptadas para responder à crise sejam verdadeiramente evangélicas, justas e eficazes. Sobretudo, exorto-vos a tornar-vos cada vez mais claramente homens e mulheres de oração, seguindo com coragem o caminho da conversão, da purificação e da reconciliação. Deste modo, a Igreja na Irlanda haurirá nova vida e vitalidade do vosso testemunho ao poder redentor do Senhor tornado visível na vossa vida. 11. Aos meus irmãos bispos Não se pode negar que alguns de vós e dos vossos predecessores falhastes, por vezes gravemente, na aplicação das normas do direito canónico codificado há muito tempo sobre os crimes de abusos de jovens. Foram cometidos sérios erros no tratamento das acusações. Compreendo como era difícil lançar mão da extensão e da complexidade do problema, obter informações fiáveis e tomar decisões justas à luz de conselhos divergentes de peritos. Contudo, deve-se admitir que foram cometidos graves erros de juízo e que se verificaram faltas de governo. Tudo isto minou seriamente a vossa credibilidade e eficiência. Aprecio os esforços que fizestes para remediar os erros do passado e para garantir que não se repitam. Além de pôr plenamente em prática as normas do direito canónico ao enfrentar os casos de abuso de jovens, continuai a cooperar com as autoridades civis no âmbito da sua competência. Claramente, os superiores religiosos devem fazer o mesmo. Também eles participaram em recentes encontros aqui em Roma destinados a estabelecer uma abordagem clara e coerente destas questões. É obrigatório que as normas da Igreja na Irlanda para a tutela dos jovens sejam constantemente revistas e actualizadas e que sejam aplicadas de modo total e imparcial em conformidade com o direito canónico. Só uma acção decidida levada em frente com total honestidade e transparência poderá restabelecer o respeito e a benquerença dos Irlandeses em relação à Igreja à qual consagrámos a nossa vida. Isto deve brotar, antes de tudo, do exame de vós próprios, da purificação interior e da renovação espiritual. O povo da Irlanda espera justamente que sejais homens de Deus, que sejais santos, que vivais com simplicidade, que procureis todos os dias a conversão pessoal. Para ele, segundo a expressão de Santo Agostinho, sois bispos; contudo estais chamados a ser com eles seguidores de Cristo (cf. Discurso 340, 1). Exorto-vos portanto a renovar o vosso sentido de responsabilidade diante de Deus, a crescer em solidariedade com o vosso povo e a aprofundar a vossa solicitude pastoral por todos os membros da vossa grei. Em particular, sede sensíveis à vida espiritual e moral de cada um dos vossos sacerdotes. Sede um exemplo com as vossas próprias vidas, estai-lhes próximos, ouvi as suas preocupações, oferecei-lhes encorajamento neste tempo de dificuldades e alimentai a chama do seu amor a Cristo e o seu compromisso no serviço dos seus irmãos e irmãs. Também os leigos devem ser encorajados a fazer a sua parte na vida da Igreja. Fazei com que sejam formados de modo que possam dizer a razão, de maneira articulada e convincente, do Evangelho na sociedade moderna (cf. 1 Pd 3, 15), e cooperem mais plenamente na vida e na missão da Igreja. Isto, por sua vez, ajudar-vos-á a ser de novo guias e testemunhas credíveis da verdade redentora de Cristo. (...) 14. Desejo propor-vos algumas iniciativas concretas para enfrentar a situação. No final do meu encontro com os Bispos da Irlanda, pedi que a Quaresma deste ano fosse considerada como tempo de oração para uma efusão da misericórdia de Deus e dos dons de santidade e de força do Espírito Santo sobre a Igreja no vosso país. Agora convido todos vós a dedicar as vossas penitências da sexta-feira, durante todo o ano, de agora até à Páscoa de 2011, por esta finalidade. Peço-vos que ofereçais o vosso jejum, a vossa oração, a vossa leitura da Sagrada Escritura e as vossas obras de misericórdia para obter a graça da cura e da renovação para a Igreja na Irlanda. Encorajo-vos a redescobrir o sacramento da Reconciliação e a valer-vos com mais frequência da força transformadora da sua graça. Deve ser dedicada também particular atenção à adoração eucarística, e em cada diocese deverão haver igrejas ou capelas reservadas especificamente para esta finalidade. Peço que as paróquias, os seminários, as casas religiosas e os mosteiros organizem tempos para a adoração eucarística, de modo que todos tenham a possibilidade de participar deles. Com oração fervorosa diante da presença real do Senhor, podeis fazer a reparação pelos pecados de abuso que causaram tantos danos, e ao mesmo tempo implorar a graça de uma renovada força e de um sentido da missão mais profundo por parte de todos os bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis. (...) Além disso proponho que se realize uma Missão a nível nacional para todos os bispos, sacerdotes e religiosos. Alimento a esperança de que, haurindo da competência de peritos pregadores e organizadores de retiros quer da Irlanda como de outras partes, e reexaminando os documentos conciliares, os ritos litúrgicos da ordenação e da profissão e os recentes ensinamentos pontifícios, alcanceis um apreço mais profundo das vossas respectivas vocações, de modo a redescobrir as raízes da vossa fé em Jesus Cristo e a beber abundantemente nas fontes da água viva que ele vos oferece através da sua Igreja. Neste Ano dedicado aos Sacerdotes, recomendo-vos de modo muito particular a figura de São João Maria Vianney, que teve uma compreensão tão rica do mistério do sacerdócio. «O sacerdote, escreveu, possui a chave dos tesouros do céu: é ele quem abre a porta, é ele o dispensador do bom Deus, o administrador dos seus bens». O cura d’Ars compreendeu bem como é grandemente abençoada uma comunidade quando é servida por um sacerdote bom e santo. «Um bom pastor, um pastor segundo o coração de Deus, é o tesouro maior que o bom Deus pode dar a uma paróquia e um dos dons mais preciosos da misericórdia divina». Por intercessão de São João Maria Vianney possa o sacerdócio na Irlanda retomar vida e a inteira Igreja na Irlanda crescer na estima do grande dom do ministério sacerdotal. (...)

Desejo concluir esta Carta com uma especial Oração pela Igreja na Irlanda, que vos envio com o cuidado que um pai tem pelos seus filhos e com o afecto de um cristão como vós, escandalizado e ferido por quanto aconteceu na nossa amada Igreja. Ao utilizardes esta oração nas vossas famílias, paróquias e comunidades, que a Bem-Aventurada Virgem Maria vos proteja e vos guie pelo caminho que conduz a uma união mais estreita com o seu Filho, crucificado e ressuscitado. Com grande afecto e firme confiança nas promessas de Deus, concedo de coração a todos vós a minha Bênção Apostólica em penhor de força e paz no Senhor.

Vaticano, 19 de Março de 2010, Solenidade de São José

Benedictus PP. XVI

ORAÇÃO PELA IGREJA NA IRLANDA

Deus dos nossos pais, Renova-nos na fé que é para nós vida e salvação na esperança que promete perdão e renovação interior, na caridade que purifica e abre os nossos corações para te amar, e em ti, amar todos os nossos irmãos e irmãs.

Senhor Jesus Cristo possa a Igreja na Irlanda renovar o seu milenário compromisso na formação dos nossos jovens no caminho da verdade, da bondade, da santidade e do serviço generoso à sociedade.

Espírito Santo, consolador, advogado e guia, inspira uma nova primavera de santidade e de zelo apostólico para a Igreja na Irlanda.

Possa a nossa tristeza e as nossas lágrimas o nosso esforço sincero por corrigir os erros do passado, e o nosso firme propósito de correcção, dar abundantes frutos de graça para o aprofundamento da fé nas nossas famílias, paróquias, escolas e associações, e para o progresso espiritual da sociedade irlandesa, e para o crescimento da caridade, da justiça, da alegria e da paz, na inteira família humana.

A ti, Trindade, com plena confiança na amorosa protecção de Maria, Rainha da Irlanda, nossa Mãe, e de São Patrício, de Santa Brígida e de todos os santos, recomendamos a nós próprios, os nossos jovens, e as necessidades da Igreja na Irlanda.

Amen.

O Papa Bento XVI revela nesta carta sensibilidade de coração, firmeza de carácter, profundidade intelectual, solidez na fé. A sensibilidade fica bem patente no tom sofrido de toda a missiva, apesar das notas de esperança, sobretudo na forma como se dirige às vítimas directas destes abomináveis abusos, e no modo de se dirigir aos seus responsáveis, onde revela a aludida firmeza de carácter. A profundidade intelectual observa-se na análise do problema ― profunda e feita a partir de múltiplas perspectivas. A solidez na fé emerge sobretudo nas propostas para fazer face ao grave problema que tem diante: para além dos meios humanos que convoca, o Papa propõe o aprofundamento da fé como meio de reparar as faltas e impedir que se repitam. Para além desta análise, que me parece insofismável, atrevo-me a emitir um parecer mais subjectivo: o Papa, deixa no ar um indisfarçável aroma da santidade. Deus no-lo conserve por muitos anos e, quando chegar a sua hora, o faça suceder por alguém do seu calibre. Nota: procedi à correcção de algumas gralhas evidentes e de algumas soluções de traduções de tradução pouco convincentes, originadas, provavelmente, pela celeridade que urgia pôr na sua realização. Quando a Santa Sé publicar uma versão definitiva do texto em português, tentaremos proceder à sua publicação em substituição desta, apresentada como provisória.
São José, protector de Jesus e de Maria, rogai pelo Papa.

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