29.4.10

Weigel responde a Küng e aguarda réplica

Já aqui aludimos a uma carta do teólogo alemão Hans Küng, a propósito da reacção que suscitou a Massimo Introvigne. Depois disso, o Público publicou-a, contribuindo para espalhar o veneno pelo mundo lusófono. Impõe-se, por isso, a publicação de uma resposta da autoria de George Weigel, na tradução portuguesa publicada no blogue Erguei-Vos, Senhor, da autoria do leitor Fabiano Rollim, aos quais dirijo os meus cumprimentos e agradecimentos:

Uma Carta Aberta a Hans Küng

21 de abril de 2010

Por George Weigel

Dr. Küng,

Há uma década e meia atrás, um ex-colega seu, um dos mais jovens teólogos progressistas no Vaticano II, contou-me sobre uma advertência amigável que lhe teria feito no começo da segunda sessão do Concílio. Essa pessoa, hoje um eminente catedrático em Sagradas Escrituras e defensor da reconciliação judaico-cristã, lembrava como, naqueles dias conturbados, você o levou para dar uma volta por Roma em um Mercedes vermelho conversível, o qual seu amigo presumiu ter sido um dos frutos do sucesso comercial de seu livro, The Council: Reform and Reunion[1].

Seu colega considerou aquela exibição automotiva um chamariz de atenção imprudente e desnecessário, dado que algumas de suas opiniões mais aventureiras, e seu talento para o que mais tarde seria conhecido como “frases de efeito”, já estavam levantando sobrancelhas e causando frio em espinhas na Cúria Romana. Então, conforme me foi contado, seu amigo o chamou à parte um dia e disse, usando um termo francês que vocês dois entendiam, “Hans, você está ficando muito évident[2].”

Como alguém que, sozinho, inventou um novo tipo de personalidade global – o teólogo dissidente que se transforma em estrela da mídia internacional – acredito que você não tenha ficado muito incomodado com a advertência de seu amigo. Em 1963, você já estava determinado a traçar um caminho singular para si, e conhecia a mídia suficientemente bem para saber que uma imprensa mundial obcecada com a história peculiar de um teólogo sacerdote dissidente daria a você um megafone para seus pontos de vista. Você deve ter ficado triste com o saudoso João Paulo II por ter tentado desmantelar aquele enredo ao retirar seu mandato eclesiástico para ensinar como professor de teologia católica; sua subsequente acusação rancorosa de uma suposta inferioridade intelectual de Karol Wojtyla, em um volume de suas memórias, tornou-se, até recentemente, o ponto mais baixo de uma carreira polêmica na qual se tornou évident que você é um homem pouco capaz de reconhecer inteligência, decência ou boa vontade em seus oponentes.

Eu digo “até recentemente”, entretanto, porque sua carta aberta aos bispos do mundo, de 16 de abril, que li primeiramente no Irish Times, estabeleceu novos padrões para aquela forma distintiva de ódio conhecida como odium theologicum e para a condenação maldosa de um velho amigo que, ao ser elevado ao papado, foi generoso com você ao encorajar aspectos de seu trabalho atual.

Antes de chegarmos ao assalto à integridade do Papa Bento XVI, entretanto, permita-me observar que seu artigo deixa terrivelmente claro que você não tem prestado muita atenção às questões sobre as quais se pronuncia com um ar de infalibilidade que faria corar as bochechas de Pio IX.

Você parece displicentemente indiferente ao caos doutrinal que cerca a maioria do protestantismo europeu e norte-americano, o qual criou circunstâncias nas quais um diálogo ecumênico teologicamente sério ficou gravemente ameaçado.

Você considera como verdadeiras as acusações mais irracionais feitas a Pio XII, evidentemente sem levar em conta que o recente debate entre os estudiosos está fazendo a balança pender a favor da coragem daquele Papa na defesa dos judeus europeus (independentemente do que se queira pensar a respeito de sua prudência).

Você erra ao representar os efeitos do discurso de Bento XVI em Regensburg, em 2006, rejeitando-o como tendo “caricaturado” o Islã. Na verdade, o discurso em Regensburg focou novamente o diálogo católico-islâmico nas duas questões que precisam ser urgentemente abordadas – a liberdade religiosa como um direito humano fundamental que pode ser conhecido pela razão, e a separação da autoridade religiosa e política no estado do século vinte e um.

Você não mostra qualquer compreensão a respeito do que realmente previne a AIDS na África, e se agarra ao desgastado mito da “superpopulação” em um momento onde as taxas de natalidade estão caindo ao redor do globo e a Europa está entrando em um inverno demográfico criado conscientemente por ela mesma.

Você parece alheio à evidência científica que subscreve a defesa que a Igreja faz do status moral do embrião humano, ao mesmo tempo em que acusa falsamente a Igreja Católica de se opor à pesquisa com células-tronco.

Por que você desconhece essas coisas? Obviamente você é um homem inteligente; você chegou a fazer um trabalho pioneiro em teologia ecumênica. O que aconteceu com você?

O que aconteceu, creio eu, é que você perdeu seus argumentos a respeito do significado e da hermenêutica correta do Vaticano II. Isso explica porque você insiste incansavelmente em sua busca cinquentenária por um catolicismo protestante, precisamente no momento em que o projeto liberal protestante está desmoronando de sua inerente incoerência teológica. E é por isso que agora você se envolveu em uma torpe difamação de outro ex-colega do Vaticano II, Joseph Ratzinger. Antes, porém, de abordar essa difamação, permita-me comentar brevemente sobre a hermenêutica do Concílio.

Ainda que você não seja o expoente mais completo, teologicamente falando, daquilo que Bento XVI chamou de “hermenêutica da ruptura” no discurso à Cúria Romana no Natal de 2005, você é, sem dúvida, o representante de maior visibilidade internacional daquele grupo idoso que continua a insistir em que o período de 1962 a 1965 marcou um caminho sem volta decisivo na história da Igreja Católica: o momento de um novo começo, no qual a Tradição seria destronada de seu lugar de costume como fonte primária de reflexão teológica, sendo substituída por um cristianismo que paulatinamente deixaria “o mundo” estabelecer a agenda da Igreja (como num mote que o Conselho Mundial de Igrejas utilizava na época).

A luta entre essa interpretação do Concílio e aquela defendida por padres conciliares como Ratzinger e Henri de Lubac dividiu o mundo teológico católico pós-conciliar em grupos contendedores representados por duas revistas: a Concilium para você e seus colegas progressistas, e a Communio para aqueles que vocês continuam a chamar de “reacionários”. O fato de que o projeto Concilium se tornou cada vez mais inviável com o tempo – e que uma geração mais nova de teólogos, especialmente na América do Norte, passou a gravitar na órbita da Communio – não deve ter sido uma experiência feliz para você. E o fato de que o projeto Communio moldou decisivamente as deliberações do Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985, convocado por João Paulo II para celebrar os resultados alcançados pelo Vaticano II e avaliar sua plena implementação no vigésimo aniversário de seu encerramento, deve ter sido outro baque.

Ainda assim arrisco dizer que a espada entrou mesmo em sua alma quando, em 22 de dezembro de 2005, o recém-eleito Papa Bento XVI – o homem cuja indicação para a faculdade teológica de Tübingen você tinha ajudado a conseguir – dirigiu-se à Cúria Romana e sugeriu que a disputa tinha acabado: e que a “hermenêutica conciliar da reforma”, que presumia continuidade com a Grande Tradição da Igreja, tinha prevalecido sobre a “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura”.

Talvez, enquanto você e Bento XVI bebiam cerveja em Castel Gandolfo no verão de 2005, você de alguma forma tenha imaginado que Ratzinger tinha mudado de idéia nessa questão central. Obviamente ele não tinha. Por que você chegou a imaginar que ele poderia aceitar sua visão sobre o que significaria uma “constante renovação da Igreja”, francamente, é um mistério. Também sua análise sobre a situação católica contemporânea não se tornou nem um pouco mais plausível quando se lê, mais adiante em seu recente artigo, que os papas recentes têm sido “autocratas” em relação aos bispos; de novo, é de se pensar se você tem prestado atenção suficientemente. Pois parece evidente e claro que Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI têm sido dolorosamente relutantes – alguns diriam, desafortunadamente relutantes – em disciplinar bispos que se mostram incompetentes ou com má conduta e que por isso perderam a capacidade de ensinar e de liderar: uma situação que muitos de nós esperam que mude, e mude logo, à luz das recentes controvérsias.

De certa forma, naturalmente, nenhuma de suas reclamações sobre a vida católica pós-conciliar é nova. Entretanto, parece mesmo muito contraditório, para alguém que realmente se importa com o futuro da Igreja Católica como uma testemunha da verdade de Deus para a salvação do mundo, insistir no ponto a que você persistentemente nos insta: que um catolicismo credível percorra o mesmo caminho traçado nas décadas recentes por várias comunidades protestantes que, conscientemente ou não, seguiram uma ou outra versão de seus conselhos para adotar uma hermenêutica de ruptura com a Grande Tradição Cristã. A propósito, essa é a singular posição que você ocupou desde que um de seus colegas se preocupou em você estar muito évident; e já que essa posição lhe manteve évident, pelo menos nas colunas de jornais que compartilham sua visão sobre a tradição católica, imagino ser demais esperar que você mude, ou mesmo aperfeiçoe, seus pontos de vista, mesmo se cada pedacinho de evidência empírica à disposição sugerir que o caminho que você propõe é o caminho da decadência para as igrejas.

O que pode ser esperado, em vez disso, é que você se comporte com um mínimo de integridade e decência nas controvérsias nas quais se envolve. Entendo o odium theologicum tão bem quanto qualquer um, mas tenho de, com toda a franqueza, dizer-lhe que em seu recente artigo você cruzou uma linha que não devia ser ultrapassada, quando escreveu:

“Não há como negar o fato de o sistema de ocultamento posto em prática em todo o mundo diante dos crimes sexuais dos clérigos ter sido engendrado pela Congregação para a Doutrina da Fé romana sob o cardeal Ratzinger (1981-2005)”.

Isso, senhor, não é verdade. Recuso-me a acreditar que você sabia que isso era falso e mesmo assim o tenha escrito, pois isso significaria que você conscientemente se condenou como um mentiroso. Mas assumindo que você não sabia que esta sentença era um punhado de mentiras, então você é tão notoriamente ignorante a respeito de como a competência por casos de abuso eram designadas na Cúria Romana antes de Ratzinger ter tomado o controle do processo e trazido o mesmo para competência da CDF em 2001, que perdeu toda a possibilidade de ser levado a sério a respeito deste ou de qualquer outro assunto que envolva a Cúria Romana e o governo central da Igreja Católica.

Como talvez você não saiba, tenho sido um crítico vigoroso e, assim espero, responsável a respeito de como casos de abuso foram (mal) conduzidos por bispos e autoridades na Cúria até o fim da década de 1990, quando o então Cardeal Ratzinger começou a lutar por uma mudança significativa no tratamento desses casos. (Se estiver interessado, consulte meu livro de 2002, The Courage To Be Catholic: Crisis, Reform, and the Future of the Church[3].)

Por isso, falo com algum conhecimento de causa quando digo que sua descrição a respeito do papel de Ratzinger, conforme citado acima, não é apenas burlesca para quem quer que esteja familiarizado com a história, mas contradita pela experiência de bispos americanos que sempre viram em Ratzinger alguém cuidadoso, disposto a ajudar e profundamente preocupado com a corrupção do sacerdócio por uma pequena minoria de abusadores, e ao mesmo tempo aflito com a incompetência e má conduta de bispos que levaram a sério, mais do que deviam, as promessas da psicoterapia ou que não tiveram a hombridade de confrontar o que tinha de ser confrontado.

Sei que não são os autores que redigem os subtítulos, algumas vezes horríveis, que são colocados em colunas de jornal. Apesar disso, você foi o autor de uma peça tão ácida – em si mesma completamente inapropriada para um sacerdote, um intelectual, ou um cavalheiro – que permitiu que os editores do Irish Times resumissem seu artigo da seguinte forma: “O Papa Bento piorou tudo o que já era errado na Igreja Católica e é diretamente responsável por engendrar o ocultamento global do estupro de crianças perpetrado por sacerdotes, de acordo com esta carta aberta a todos os bispos católicos.” Essa falsificação grotesca da verdade demonstra aonde o odium theologicum pode levar um homem. Mas de qualquer forma isso é vergonhoso.

Permita-me sugerir que você deve ao Papa Bento XVI um pedido público de perdão pelo que, objetivamente falando, é uma calúnia que, assim rezo, tenha sido formada em parte por ignorância (ainda que por ignorância culpável). Garanto-lhe que sou a favor de uma profunda reforma na Cúria Romana e no episcopado, projetos que descrevo até certo ponto no livro God´s Choice: Pope Benedict XVI and the Future of the Catholic Church[4], uma cópia do qual, em alemão, ficarei feliz em enviar-lhe. Mas não há caminho para a verdadeira reforma na Igreja que não passe pelo íngreme e estreito vale da verdade. A verdade foi trucidada em seu artigo no Irish Times. E isto significa que você atrapalhou a causa da reforma.

Com a garantia de minhas orações,

George Weigel

George Weigel é Membro Sênior do Centro de Ética e Política Pública de Washington, onde ocupa a cadeira William E. Simon em estudos católicos.

Artigo original em inglês disponível em: http://www.firstthings.com/onthesquare/2010/04/an-open-letter-to-hans-kung

Traduzido por Fabiano Rollim


[1] N. do T.:“ O Concílio: Reforma e Reunião” – livro não publicado no Brasil.

[2] N. do T.: Évident: aparente, evidente, notável.

[3] N. do T.: “A Coragem de Ser Católico: Crise, Reforma e o Futuro da Igreja” – livro não publicado no Brasil.

[4] N. do T.: “A Escolha de Deus: O Papa Bento XVI e o Futuro da Igreja Católica” – livro não publicado no Brasil.

Sem comentários: