Tradução: Fratres in Unum
Igreja de São Pedro, Assis, 1986: estátua de Buda sobre as relíquias do mártir Vitorino, morto, 400 anos depois de Cristo, por testemunhar a fé.
Joseph Ratzinger, em outubro próximo, irá a Assis, vinte e cinco anos depois do encontro inter-religioso de oração pela paz convocado por Karol Wojtyla. Em 1986, o encontro recebeu diversas críticas, mesmo dentro da Cúria Romana: “Assim se abre o caminho ao indiferentismo e ao relativismo religioso”, era o parecer de muitos, segundo alguns, mesmo o do então prefeito do ex-Santo Ofício. E hoje? Por que Bento XVI vai a Assis? Não é alimentada, desta forma, a idéia de que uma religião valha tanto quanto outra? E depois: é justo dialogar com o islã sem um empenho explícito no reconhecimento da liberdade religiosa aos cristãos nos países muçulmanos?
O historiador Giovanni Maria Vian dirige o Osservatore Romano. Disse ele: “A decisão de ir a Assis é uma consequência lógica da linha que o Papa sempre teve sobre as relações com outras religiões, desde sua eleição: uma relação amigável e ao mesmo tempo a insistência sobre a necessidade de assegurar a todos a oportunidade de ser o que são, em suma, a ‘liberdade religiosa’. Assis, neste sentido, é um evento simbólico, que entretanto abre brechas a interpretações errôneas e esclarecidas com a declaração ‘Dominus Iesus’, de 2000. E em 2002, foi o Cardeal Ratzinger quem acompanhou o Papa na cidade de São Francisco. Em 20 de abril de 2005, um dia após sua eleição, Bento XVI pediu ‘um diálogo aberto e honesto’ com outras culturas e religiões. Em 20 de agosto daquele ano, em Colônia, ele encontrou alguns muçulmanos e pediu a mesma coisa. Disse-lhes: ‘Desejamos buscar a via da reconciliação e aprender a viver respeitando cada um a identidade do outro. A defesa da liberdade religiosa, neste sentido, é um imperativo constante e o respeito pelas minorias um sinal indiscutível de verdadeira civilidade’. Depois de Colônia, em 2006, veio Ratisbona. O centro da ‘lectio’ papal não era o islã, mas a relação entre fé e razão. Na minha opinião, naquela ocasião, o Papa foi instrumentalizado. Sua linha era, pelo contrário, a de sempre: ‘Nemo impediatur, nemo cogatur’, disse Paulo VI sintetizando a ‘Dignitatis Humanae’. Isto é, ‘ninguém seja impedido, ninguém seja constrangido’. Nesse sentido, é importante que todos gozem de uma efetiva liberdade de religião. Mas também é importante o diálogo. Assis é tudo isso”.
A esse respeito, diz Antonio Socci: “Penso que Assis seja, em certo sentido, um cumprimento de Ratisbona, digamos, o outro lado da moeda. Na Alemanha, o Papa disse a verdade: não pode haver fé sem razão. Mas ele o disse estendendo a mão ao islã. Esta mão, no entanto, não foi acolhida. Hoje, em Assis, é isso o que Ratzinger faz. Volta a estender a mão, mas sem negar a verdade”.
Segundo alguns críticos, e não apenas na ala mais conservadora da igreja, a oração em comum pode gerar confusão e arrisca diluir as diferentes identidades, antes de tudo a católica. Vian ainda diz: “Todo encontro entre religiões apresenta riscos. Mas tudo depende de como é concebido e apresentado. Ratzinger, obviamente, sabe o que faz. Não nos esqueçamos que foi ele quem assinou a declaração “Dominus Iesus”, dedicada à unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. Era a doutrina do Vaticano II e de sempre. Uma doutrina inequívoca. Em Assis tudo isso estará bem presente”. Na Cúria, muitos recordam quando Ratzinger foi a Assis em 2002 para uma reedição do encontro de 1986. Acompanhou Wojtyla. Ao retornar, disse a Andrea Riccardi, chefe da Comunidade de Sant’Egidio, que a partir de 86 tinha continuado a convocar anualmente os líderes religiosos: “Estou muito feliz. Tudo aconteceu da maneira certa”. Uma vez em Roma, Ratzinger escreveu suas reflexões para a revista mensal 30Giorni, parecendo uma resposta indireta àquelas críticas. Explicou que Assis foi “um esplêndido sinal de esperança”. Disse que os cristãos “não devem temer” tais encontros, pois Assis não era “uma auto-representação de religiões que seriam intercambiáveis entre si. Não se tratou de afirmar uma igualdade entre as religiões, que não existe. Assis foi, sim, uma expressão de um caminho e de uma busca pela paz, que só o é se unida à justiça”.
Em suma: Tanto melhor é Assis, contanto que aos bons propósitos acompanhem afirmações dos direitos dos indivíduos. Mesmo a “ausência de guerra”, escreveu o Papa, “pode somente ser um pretexto atrás do qual se escondem a injustiça e a opressão”.
De todo modo, ainda hoje Assis é um tema é muito discutido no Vaticano. Nem todos o digerem, mesmo na Cúria. Fora da cúria, os piores inimigos de Assis são os lefebvristas. Nas últimas horas, Dom Bernard Fellay, chefe da Fraternidade São Pio X, disse: “Me deu um calafrio na espinha quando ouvi que o Papa irá a Assis. Procura-se negar aquilo que ocorreu da primeira vez”. O quê? A acusação é aquela que antes havia feito Marcel Lefebvre. Foi ele, em 1986, dois anos antes da excomunhão papal, que pressionou em uma acusação da qual depois os encontros posteriores procuraram corrigir: o sincretismo.
Foi nesses dias que foi divulgada uma foto que chocou a muitos: uma teca com uma estátua de Buda no altar da igreja de São Pedro, em cima das relíquias do mártir Vitorino, morto, 400 anos depois de Cristo, por testemunhar a sua fé.
Na última terça-feira, no jornal Il Foglio, alguns católicos pediram que o Papa não reacenda, indo a Assis, as confusões sincretistas. Filippo Di Giacomo escreveu no L’Unità e assinou o apelo do Il Foglio. Diz: “É difícil entender por que o Papa vai a Assis. Certamente, há uma estrutura de diálogo oficial na Igreja que sente a necessidade de ser visível por meio da realização de gestos desse tipo. Mas a pergunta de fundo continua sendo uma: para que servem esses encontros? O que deixam? Além do risco de que haja quem, até na Igreja, pense que Deus seja alguém que tem um nome que muda de acordo com a religião que o professa, há um elemento muito concreto que não se deve subestimar: o fato de que encontros como o de Assis mostram aos olhos dos fiéis de outras religiões um catolicismo frágil, gentil, que faz questionar; não é que todo esse florescimento de mártires cristãos é um fruto perverso dessa fase dialogante?”.
Read more at fratresinunum.comPublicado no Il Foglio de quarta-feira, 12 de janeiro de 2011.
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