3.10.10

De arte Lusitana

Um dos "trunfos" da arte islâmica ― o arco em ferradura ― é muito anterior ao islão, conforme atestam os trabalhos iniciados em 1877 pelo introductor da archaiologia scientífica em Portugal, Estácio da Veiga, continuados por Leite de Vasconcelos e aprofundados cerca de cem anos depois do primeiro pela equipa de Cláudio Torres, que trouxeram ao público a memória da Basílica Paleocristã de Myrtilis (Mértola), construção composta por três naves e duas ábsides afrontadas, uma oriental e outra ocidental, em cuja fachada se teria aberto um pórtico, «provavelmente em duplo arco de ferradura ou arco ultrapassado, assente em colunas, de acordo com a sugestiva figuração de pórticos, esculpida em algumas lápides, e especialmente bem elaborada na do chantre Andreas, sendo assinalável o realismo algo naïf da arte deste período. (...)

Sem dúvida a função primacial [da vasta basílica myrtilense] foi a de lugar de doutrina e culto cristão, assistida por um corpo eclesial hierarquizado e bastante completo formado por presbíteros de que se conhecem os nomes de alguns; (Satírius, Romanus, Simplícius, Britto, Afranius), que presidiram à celebração de ofícios (a missa), administração dos sacramentos, formação dos catecúmenos etc, servida por uma pompa litúrgica especialmente rica no período visigótico. Queremos realçar aqui a função do canto que desempenhou um papel importante no convite à piedade e na criação de um clima emocional propício à exaltação do divino e ao fortalecimento da fé, nestas comunidades primitivas.

Sobre o exercício do canto na igreja myrtilense informa-nos o epitáfio (séc.VI) do já referido Andreas designado no texto "princeps cantorum", isto é o primeiro cantor [referência única em toda a península ibérica], e como era habitual deve ter presidido ao côro [local preferido para as inumações] e a uma "Schola" de cantores; e quem sabe se não exerceu a função de escola laica ministrando nesses tempos difíceis os rudimentos de leitura e escrita assumindo assim uma função social, como era habitual na alta Idade Média.

Além dos presbíteros e chantres, (cléricos de ordens maiores), a igreja de Myrtilis foi também servida pelos chamados menoristas. Entre estes conhecem-se o leitor Tyberius que faria a leitura das epístolas e um ostiário (porteiro) chamado Exupérius que teria por função a segurança e a limpeza da igreja.»

A Basílica funerária de Myrtilis extra-muros tem ainda a oferecer aos seus visitantes a mais antiga lápide de um judeu na península ibérica, com um candelabro (menorah), a exemplificar a componente judaica latinizada da sociedade myrtilense, próxima à cristã, bem como algumas epígrafes gregas, aparentemente de falantes com representação eclesiástica própria, referindo Êutiques, por coincidência ou não o nome do proponente do monofisismo. Esta heresia cristã de tipo unitariano, segundo Cláudio Torres, teria predisposto Mértola, tal como outras urbes mediterrânicas onde majoravam o arianismo e o monotelismo, à penetração do islão nos séculos VII e VIII.

«Antes da sacralização do local, ocorrida em meados do século V, essa zona foi ocupada por uma necrópole de incineração, que deu lugar a um cemitério de inumação a partir de finais do século I.» Quanto à tipologia da basílica e suas sepulturas (com tesselas), é de salientar a influência do norte de África, Proconsular, com o qual a cidade teria fortes ligações comerciais através do rio Guadiana. A orientação dos túmulos paleocristãos, com a cabeça a poente e o corpo deitado de costas de forma a que este possa olhar o Sol nascente no dia do Juízo Final, difere da dos islâmicos, com o lado direito virado a Meca.

«Embora seja identificável, do ponto de vista arqueológico, um estrato de destruição perfeitamente nítido (com abundantes vestígios do telhado [tégula e imbrices] sobre o pavimento) é possível que, logo no início do período islâmico, o local tenha servido como zona funerária. Algumas das sepulturas islâmicas (localizadas no mesmo nível arqueológico das paleocristãs) apresentam com estas fortes semelhanças do ponto de vista construtivo. Outras assentavam sobre o derruído telhado da basílica, edifício que teria entretanto sido abandonado», embora a zona seguisse sendo uma importante área mortuária. Há ainda elementos decorativos de origem oriental (aves do paraíso com cauda de pavão num campo de ramos de roseiras em botão) presentes nas lápides paleocristãs e mais tarde na cerâmica verde e manganês do Al-Andalus.

Mas característica da Lusitânia teria sido, entre outros pormenores epigráficos, a representação de arcos sobre colunas. Eis a transcrição do Epitáfio de Andreas:

«arco duplo (em ferradura) assente sobre duas colunas torsas com capitéis decorados [de tipo corintizante]
(dentro do arco)
alfa crismon ómega
ANDREAS FAMVLVS
DEI PRINCEPS CAN-
TORUM SACROSAN
CTE A[E]CLISIAE MER-
TILLIA[N]E VIXIT
ANNOS XXXVI
REQVIEVIT IN PA-
CE SUB D(IE) TERTEO
KAL(ENDAS) APRILES
AERA ∂LX TRI-
SIS
André, [familiar-]servidor
de Deus, primeiro [principal]
cantor da sacrossanta
Igreja
Mertiliana, viveu
36 anos,
descansou em
paz no terceiro dia
das calendas de Abril
da era de 560 e 3 [era de César] (o que corresponde no nosso calendário ao dia 30 de Março do ano de 525)
(alfa, cruz monogramática, ómega)
CH[...]

Chama-se a atenção para a expressão sacrossancta aeclisia mertilliana que refere o conjunto da comunidade cristã de Mértola, e para a decoração de arcos sobre capitéis decorados por três ordens de folhas de acanto, sustentadas por colunas torsas. As duas cruzes com alfa e ómega, a indicar que em Cristo está o princípio e o fim, iniciam e fecham o texto funerário: uma linha abaixo podem ver-se as letras CH[...], certamente início de uma frase de tipo propiciatório como por exemplo ― Cristo esteja contigo!.»

in Museu de Mértola - Basílica Paleocristã, coord. (catálogo e exposição) Cláudio Torres, ed. Campo Arqueológico de Mértola, 1993

1 comentário:

Luís Cardoso disse...

Serviço público, Francisco.
Obrigado.

A entrada da wikipedia sobre o monofisismo tem uma afirmação muito suspeita: diz : «O Egito e a Síriaaceitaram sem resistência, um século e meio mais tarde, o domínio islâmico.»
Para além da entrada do islão ter sido violenta, não faz qualquer menção do estatuto de segunda-classe a que os cristão e os judeus desses territórios sob domínio islãmico se viam subemetidos: a dhimma. http://en.wikipedia.org/wiki/Dhimmi

Sabes como é que se pode contestar uma afirmação na wikipedia? Tentei inserir uma nota de rodapé a apontar que a frase é, no mínimo, controversa e não consegui.